quinta-feira, 4 de setembro de 2008

História de um repórter acidental em Pequim

Estudei em escola pública de periferia toda a minha vida. Minha mãe, filha de um matador de aluguel da região Centro-Oeste, foi faxineira, manicure e corretora de imóveis. Hoje ajuda a administrar uma loja no centro de São Paulo.

Meus amigos de infância têm profissões como mecânico, cobrador de ônibus e um, que se deu bem, virou agente de viagens. Outro ainda está patinando, passou alguns anos preso. Há quatro anos apenas eu e um colega não tínhamos celular numa turma de 45 pessoas na faculdade. Fiz minha primeira viagem de avião em 2006, aos 25 anos, dez anos depois de ir pela primeira vez ao cinema, a bordo de uma Brasília azul piscina bem arrebentada.

Você que chegou até aqui deve estar com a mesma dúvida que eu: como diabos consegui cobrir os Jogos Olímpicos de Pequim?

Também não sei direito, mas vou tentar explicar.

Escolhi a carreira de jornalista aos 10 anos de idade, após ver um tio repórter policial sair de casa de madrugada e voltar só no fim da tarde, cheio de causos. Era aquilo que eu queria fazer. E já naquela época eu queria mesmo é ter histórias sobre os Jogos Olímpicos –resultado de várias aulas perdidas para assistir na TV aos Jogos de Barcelona, em 1992.

Quem conta com poucos recursos se esforça para ser mais objetivo na vida. Por isso meus familiares logo recomendaram que eu estudasse inglês para um dia lecionar e pagar para conquistar o diploma de jornalista. E assim aconteceu. Em 2002, fui aprovado na Faculdade Cásper Líbero. Já no primeiro ano, novos amigos brincavam com o objetivo comum de cobrir os Jogos de Pequim. Eu achava bastante improvável. E assim pensei até o fim de 2007.

Um dos meus bons amigos foi chamado a trabalhar na rádio estatal chinesa. Quando ele me convidou para ir à China durante o período olímpico, aceitei sem titubear. Reservei a maior parte das economias feitas em dois anos e empenhei. Não me importei em manter o meu emprego, nem com o gasto levemente acima das minhas capacidades. Fazer jornalismo em um lugar tão cheio de complexidades me parecia mais valioso e recompensador.

E certamente foi.

Paguei pela passagem, providenciei a estadia com meu amigo, tirei minhas folgas acumuladas e férias e ganhei a autorização do chefe de onde trabalho para fazer freelances. Uma arquitetura nada fácil e que, com justiça, foi cercada de desconfiança. Ainda mais porque iria a Pequim sem uma única credencial –que também serve de visto de permanência no país.

Por conta disso, não houve escolha: já que a ditadura chinesa endureceu a concessão de vistos de jornalista, tirei visto de turista. Foi um mês e meio com constante medo de ser vigiado, espionado, seguido e, quem sabe?, deportado por estar cumprindo o dever moral de reportar tudo que pudesse sobre um lugar onde o governo ainda não tolera qualquer crítica vinda da imprensa. E fazer isso sem prejudicar os amigos que vivem aqui.

Até por minha segurança, poucas vezes me identifiquei como jornalista em Pequim. Quando a polícia veio me levar para passear –estava com o visto expirado--, afirmei ser professor e tradutor. Não deixa de ser verdade. Mas só pude ficar mais à vontade a respeito da minha profissão quando conversava com estrangeiros, nunca com chineses. Nas vezes em que precisei conversar com locais, fiz uso de intermediários: colegas que falavam o idioma ou que contassem com a credencial. Nenhuma vez usei os nomes verdadeiros dos entrevistados –nunca se sabe o que pode acontecer com eles, me recomendaram jornalistas que trabalham aqui.

Depois de trabalhar diante dessas dificuldades –sem falar na impossibilidade da comunicação no idioma local, o que é uma barreira enorme--, saio da China com a sensação de trabalho feito, mas de dever não cumprido. Por mais que cobrir as Olimpíadas seja um sonho realizado, principalmente para alguém com um histórico como o meu, muitas histórias se perderam neste momento em que a China esteve mais aberta do que nunca.

Não consegui contar nenhuma história de mecânico, de cobrador de ônibus e, até dos que se deram bem, como os agentes de viagem, iguais aos meus amigos de infância. É também para contar histórias como as deles que quis me tornar jornalista.

Saio da China tendo escrito 24 reportagens ao todo, para quatro veículos diferentes, sem falar nos inúmeros textos para este blog. Mas nada que contasse quem são as pessoas daqui e por que elas vivem desse jeito. O pior é que sinceramente não sei se teria sido melhor ter coberto o evento com um crachá no pescoço, perdido na Ilha da Fantasia do Olympic Green.

O que me alivia é o fato de que eu realmente tentei. Quase que por militância, vim até a China porque gosto de fazer jornalismo. Algumas pessoas que vivem aqui até agora não entendem o motivo de eu ficar tão irritado por estas bandas. E a razão é que eu quero continuar fazendo reportagem, pelo resto da vida se possível.

E hoje, dia em que finalmente pego meu vôo para deixar esta maluquice de China, deixo aqui o agradecimento às pessoas que viabilizaram essa minha aventura.

Ao amigo Felipe Corazza, pelo convite e por me abrigar em sua casa apesar dos óbvios riscos, e à sua noiva, Ana Torres, por me receber.

Ao amigo Victor Boyadjian, pois sem ele não teria trabalhado nem aproveitado a experiência tanto quanto aproveitei.

À minha família, minha namorada e meus amigos, já que sem o apoio deles não teria nem pensado em vir.

Ao Paulinho, outro apaixonado por essa profissão e que divulgou meu trabalho em seu digno espaço na Internet.

E aos colegas da Reuters, que confiaram nos meus esforços e me ajudaram nessa empreitada.

Não teria conseguido nada se não fosse por vocês.

Ainda é só o começo!

Rumo a Paris, para uma merecida semana de férias.

A bientôt!

5 comentários:

Anônimo disse...

Caríssimo, só li seu post agora (neste momento, você está no aeroporto de Pequim, prestes a embarcar rumo a Paris).

Cara, espero que esse período aqui na China tenha sido tão valioso pra você quanto tem sido pra mim. É uma merda, um puta saco, uma maravilha e um tesão ao mesmo tempo. Tudo misturado.

A hospedagem foi do melhor jeito que conseguimos fazer, com as limitações que o trabalho, o apê, a China e o período olímpico impuseram.

Falando do "risco óbvio", eu poderia escrever um monte de bobagens pseudo-filosóficas que satisfariam os egos e não diriam nada, então, nada melhor pra resumir tudo do que uma frase de qualquer mano da periferia de São Paulo: "Deixa os cara vim que nóis resolve a parada, mano!".

Abração, obrigado por tudo e vamo que vamo.

Te vejo na 66 e no Brasil.

Anônimo disse...

Férias merecidas, Mau...
Você é mais um "workaholic" da nossa "family-viking-louca" que está construindo a sua própria história independentemente da situação ser favorável ou não.
Beijos!

Anônimo disse...

Opa, boa semana em Paris, amigo! Pelo menos você não vai precisar encarar 24 horas direto dentro do avião, né? Humpf!

Nem sei como consegui encontrar forças para ligar o computador depois que cheguei em casa hoje, hehehe.

Sobre o período na China, a melhor definição é essa do Corazza no comentário aí de cima: "É uma merda, um puta saco, uma maravilha e um tesão ao mesmo tempo. Tudo misturado".

Abraço!

Carmen Guerreiro disse...

"Saio da China com a sensação de trabalho feito, mas de dever não cumprido"... Acho que sinto isso constantemente em relação ao jornalismo!

Grande texto, grande blog. Acompanhei durante esse tempo todo, mudinha.

Em vez de resolver os ditos e não ditos, conforta saber de você pelo blog, sem as muralhas pessoais construídas pelo tempo (espero que não sejam tão resistentes e longas quando a famosa).

Je te souhaite une très bonne semaine à Paris! À bientôt et bisous.

Anônimo disse...

cara, agora esqueça Pequim e viva uma semana de "Os Sonhadores". Abração!